a última carta

A dor fincada e indelével constantemente presente em meu peito deu as caras novamente. Tal dor tomara proporções extraordinárias! Dói tanto, que já nada sinto mais, do que eu deveria ser capaz? Dado como crime hediondo o mal-dito sentir que permitiu morrer em mim a fluência dos vocábulos perdidos nas entrelinhas do miocárdio, fez esquecer-me da essência do dizer, da poesia que transcende o verso e perfura o estômago sem pestanejar. Penso ser consequência direta da morte de luce. luce se foi e pouco a pouco, pedaço por pedaço, parte por parte do meu ser se desfez de forma irreversível. Percebo a profundidade da dor e da tristeza advinda dessa constatação mas não sou capaz de mudar a expressão apática em minha face - faço deste fato a certeza de minhas decisões. Ao longo deste texto busco o tempo todo o autocontrole a fim de não expressar de forma agressiva tudo aquilo que tenho guardado por todo esse tempo, mas reconheço a grande dificuldade que há nisso, me perdoem, é que sempre doeu tanto, sempre um nada tão grande, um tudo tão diminuto, não há fim, não há saída, não há perspectiva. Todos os caminhos levam ao vazio, qual o sentido da vida? Perdi o tom de minha própria essência. Não há mais saídas para um ser humano tão repulsivo e fátuo. Ouso gozar do desejo infindável de afogar-me por inteira no mar vermelho que há de se formar gota-a-gota até o último suspiro, de observar cuidadosamente cada espectro de luz se esvair até o breu reentrante, desejo ouvir o ecoar da ária cantilena da vida lentamente adentrar meus ouvidos em direção ao peito outrora ardil, por fim, deixar fluir o mar presente em meu olhar ao compartir pela última vez o abalo vívido de cada nota. Faço desta a última carta, o último excerto, de uma vida pueril que se foi sem se ver, que sentiu na escuridão e não exalou o alvor. Hoje morre um poeta e nasce a eternidade, perdoe a fraqueza.